quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Em que parte do caminho nos perdemos...


Muito se tem falando, nos últimos tempos, sobre o perda da hegemonia brasileira no futebol. Discussão que ficou mais acirrada após a precoce desclassificação da Copa do Mundo da África. A gota d´água parece ter sido a emblemática derrota do Santos para o Barcelona na final do Mundial de Clubes, no Japão. Emblemática porque virou moeda corrente na boca da maioria esmagadora da mídia e dos próprios jogadores que “tomamos um banho de bola”. 

O discurso do conformismo encontrou, raramente, algum ponto discordante. Ironicamente, quem deu o contraditório foi o técnico do Barcelona, Josep Guardiola: “O Barcelona passa a bola como meu pai falava que vocês [brasileiros] faziam".

Pois é. Fazíamos em 1958 com jogadores como como Nilton Santos, Zagallo, Djalma Santos, Zito, Mazzola, Pepe, Dino Sani e Moacir. Sem falar, é claro, de Garrincha e Pelé. O jornalista e cineasta José Carlos Asbeg documentou em “1958, o ano em que o mundo descobriu o Brasil” aquele esquadrão que vencera a Suécia, o complexo de vira-latas da derrota de 50 e, de quebra, tocava a bola, de pé em pé. Nenhuma novidade.

Nada novo também 1962 no Chile ou 1970 no México (é bom dizer que aqui o início da Tv a cores ajudou sobremaneira no processo de construção do Brasil como o “país do futebol). Falamos até agora do futebol arte/vencedor. O utópico e ideal amálgama entre a vitória e a arte. O ético e o estético.

Mas não há como negar que o toque de bola do Barcelona remete à seleção brasileira de 82, comandada pelo mestre Telê. Exagero? Vejamos então as imagens da partida entre o Brasil e a Itália, de Paolo Rossi. Mesmo na derrota, depois de assistir, fica difícil evitar a expressão “futebol-arte”. O lateral esquerdo Júnior – o “capacete” - cansou de se deslocar a la “Daniel Alves” do Barcelona. E pergunto novamente: qual a novidade?

Claro que há também exemplos europeus. Historicamente, o futebol holandês talvez seja o que mais se aproxime do estilo de jogo aberto àquilo que chamamos de poesia. As muitas improvisações táticas da seleção de 1974, resultando no “futebol total”, ainda hoje é referência no esporte, mesmo com o perda do título para a Alemanha naquela Copa.

E, então, pergunto: em que parte do caminho nos perdemos? Longe de querer dar solução imediata à questão tão controversa, nos propusemos a lançar algumas ideias sobre o assunto.

A questão-raiz parece ser cultural. E aqui vou tomar emprestado parte de um texto escrito pelo Gilberto Gil, quando ministrou a Cultura do Brasil e, na ocasião, travava uma relação com o governo da Alemanha por conta da Copa naquele país.

O futebol tem muitas dimensões que se entrelaçam, formando um mosaico amplo, variado e global. Ele pode ser encarado como espetáculo, competição, ritual, metáfora, celebração, síntese, catarse. E tudo isso ao mesmo tempo. Mas não há apenas um futebol. Embora o conjunto de regras, o palco e a base do repertório sejam comuns, cada sociedade tem o seu modo próprio de jogar e de torcer, resultado de sua história e de sua cultura, e da interação de sua história e de sua cultura com as outras. O futebol tem, portanto, uma dimensão que integra as demais: trata-se de uma construção cultural. Abordá-lo enquanto fenômeno cultural, em suas relações múltiplas com o conjunto de signos e de expressões artísticas locais e planetárias, pode ser ao mesmo tempo uma experiência significativa e reveladora, em especial quando se realiza uma Copa do Mundo.
Tome-se, por exemplo, o caso do Brasil, país essencialmente sincrético e mestiço, seja racialmente, seja culturalmente, em que o futebol transformou-se no esporte nacional. O jogo de bola com os pés aportou em São Paulo na última década do século 19, cerca de 30 anos após a instituição, na Inglaterra, do livro de regras do "football association", uma iniciativa que perdura até hoje, capaz que foi de resumir e otimizar centenas e centenas de anos de experiências diversas de futebol, em países e contextos tão diferentes quanto a China dos imperadores e a Itália medieval. O novo esporte chegou na mala de um jovem aristocrata e logo tornou-se, ao lado do cricket, o esporte predileto da elite branca, restrito aos clubes sociais. Assim teria continuado, se os descendentes de escravos e índios não tivessem identificado na brincadeira semelhanças com a sua cultura.
Mais precisamente, com suas danças (como a embolada), suas lutas (como a capoeira) e todo o simbolismo de uma expressão própria da língua portuguesa que identifica tanto um movimento desconcertante de corpo, que permitia aos fracos perseguidos livrar-se de seus fortes perseguidores, enganando-os, quanto uma atitude, uma postura, um modo de ser, pensar e sentir: a ginga. O futebol se joga com os pés, as pernas e a cintura, e boa parte das manifestações culturais que se formaram no Brasil a partir da mistura de negros, índios e europeus baseia-se nos movimentos de pés, pernas e cintura. E na ginga. Foram necessários menos de 20 anos para os mestiços se apropriarem do futebol inglês, mesclarem aqueles movimentos, transformarem a ginga em drible e criarem o "futebol arte", expressão com que o mundo consagra o modo brasileiro de jogar.

Consideras as ponderações acima, não podemos nos prender na qualidade técnica dos jogadores. Àquilo que chamamos de futebol-arte nasceu, repito, por aqui mesmo, pelas questões tão bem colocadas pelo Gilberto Gil.

Nosso desvio metonímico – de trocar a parte pelo todo - parece ter outra motivação: mercadológica. O fim das categorias de base, por exemplo. Em alguns times elas foram simplesmente instintas. Em outros, são formados - a toque de caixa – times relâmpagos que tem por objetivo único revelar/vender jovens promessas. Afasta-se , assim, o conceito do futebol-conjunto, do futebol total, da bola de pé em pé. Pior que isso, afastam-se os “professores”, antigos mestres da bola e entram em cena profissionais/olheiros/empresário formados por esta nova estrutura mercadológica/ludopédica que se nos apresenta.

Acho, honestamente, muito difícil que esta lógica seja invertida. Exemplos que “vem de cima”, como a iniciativa do presidente do Santos de manter Neymar no clube e no Brasil podem acender uma luz de esperança nesse nevoeiro do futebol brasileiro. A questão está muito longe de ser simples.



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